"QUALQUER UM PODE JULGAR UM CRIME TÃO BEM QUANTO EU, MAS O QUE EU QUERO É CORRIGIR OS MOTIVOS QUE LEVARAM ESSE CRIME A SER COMETIDO." (CONFÚCIO)

quarta-feira, 23 de março de 2011

O artigo 311 do CPP e o sistema acusatório: pode o juiz decretar a prisão preventiva de ofício?

O sistema acusatório é caracterizado pela separação das funções de acusar e julgar, tendo sido adotado pelo ordenamento jurídico brasileiro no artigo 129, I da CRFB/88, que atribui ao Ministério Público, órgão criado em meados do século XIV na França, a titularidade para o exercício da ação penal pública. Isso significa que cabe ao órgão ministerial todo o ônus da acusação, iniciando-se a ação através de sua iniciativa, com o oferecimento da denúncia ao juiz e consequente instrução probatória do delito a que imputa ao acusado na peça vestibular.

Ao juiz restará prezar pela inércia e imparcialidade, atuando quando solicitado pelas partes e para exercer controle de legalidade sobre os atos e procedimentos requeridos tanto pela autoridade policial como pelo próprio MP, para que a persecução penal prossiga em regularidade, evitando-se assim assumir funções tipicamente de acusação. Igualmente entendem Pacelli e Fischer, para quem a autoridade judiciária cabe “dirigir a realização dos atos processuais, sobretudo e particularmente no que se refere à regularidade da atuação das partes e de terceiros no processo e também no atine com a manutenção da ordem no local dos trabalhos.”[i]

Quanto a questão da imparcialidade do magistrado, Rangel mantém o mesmo entendimento elencado, pois segundo ele, ao magistrado  deve a posição de mantenedor do equilíbrio do processo, utilizando-se das providências necessárias à direção processual.[ii]

Tratando-se de prisão preventiva, o artigo 311 do Código de Processo Penal traz em sua redação o seguinte, in verbis

Art. 311. Em qualquer fase do inquérito policial ou da instrução criminal, caberá a prisão preventiva decretada pelo juiz, de ofício, a requerimento do Ministério Público, ou do querelante, ou mediante representação da autoridade policial. (Redação dada pela Lei nº 5.349, de 3.11.1967)

O referido artigo estabelece os critérios sob o qual será decretada a medida preventiva, que poderá ser realizada durante ambas as fases da persecução penal, desde que mediante o requerimento dos legitimados em seu rol, sejam eles o Ministério Público, o querelante ou a autoridade policial. Não obstante, quanto à decretação da prisão preventiva de ofício pelo juiz como ato de direção do processo, cabe uma ressalva.

Como se sabe, o Código de Processo Penal vigente data a década de 1940, estando longínquo aos fatos que cercam a sociedade em suas relações atualmente. É notável que à época em que a Lei 5.349 de 3 de novembro de 1967, que modificou o artigo 311 e outros dispositivos do CPP  foi editada, o Brasil passava por um momento de tensão gerado pela ditadura militar e, por isso, ainda mais notáveis os motivos que levaram à modificação do dispositivo em favor da permissão concedida ao juiz na norma citada, como forma de controle aos imputados.

Diante da previsão constitucional acerca da adoção do modelo acusatório no direito brasileiro, é dever do juiz se manter afastado de atividades atribuídas ao titular da ação penal, para que mantenha uma postura imparcial no exame do feito, sem formar juízos prévios ao julgamento da ação.

De forma a abolir a incidência da atuação do magistrado sobre atos típicos do autor da ação penal, o PLS 156/2009 o retirou de dentre os seus legitimados a requerer a decretação da medida preventiva, bem como dispôs em seu artigo 4º que é vedado “a iniciativa do juiz na fase de investigação e a substituição da atuação probatória do órgão de acusação”.

É inegável, desta forma que a permissividade do artigo, diante do que estabelece a Carta Magna de 1988 é inviável ao Estado vigente, pois tal característica, conforme prescreve Aury Lopes Jr. é típica de um sistema que conduz a um “juiz ator (e não espectador), núcleo do sistema inquisitório. Logo, destrói-se a estrutura dialética do processo penal, o contraditório, a igualdade de tratamento e, por derradeiro, a imparcialidade – o princípio supremo do processo.”[iii]

Portanto, a previsão do artigo ao permitir a decretação de prisão preventiva de ofício pelo juiz é, neste passo, uma invalidade[iv], uma afronta à ordem vigente e, tal como no projeto de lei 156/09, deve ser abolida da persecução penal pelo fato de que um juiz com poderes investigatórios não corresponde a um processo fundado nas garantias fundamentais, mas tende a fincar as bases do processo de forma dúplice contra o indivíduo imputado, junto à figura do promotor, titular da acusação e da ação penal pública.


[i] OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. FISCHER, Douglas. Comentários ao Código de Processo Penal e sua Jurisprudência. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 473-474.
[ii] RANGEL, Paulo. Direito Processual Penal. 16. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, p. 53.
[iii] LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal e sua Conformidade Constitucional. 4. ed. rev. e atual.,  vol. II. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 98.
[iv] OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. FISCHER, Douglas. op. cit. p. 606. 

2 comentários:

  1. Muito bem colocado, colenda colega. Corroborando com o que foi aqui exposto,
    Afrânio Silva Jardim afirma que “após a Constituição de 1988 o sistema acusatório foi reforçado e adquiriu contornos mais puros, abolindo-se de vez todo e qualquer procedimento ex officio, para tornar reais e efetivas as garantias constitucionais do direito de defesa. Estabeleceu-se, em conseqüência, perfeito equilíbrio entre acusação e defesa, ao mesmo tempo em que se colocou, como conseqüência, o juízo penal, órgão da jurisdição, em posição de absoluta imparcialidade, tal como no processo civil. Os interesses de ordem pública, tão palpitantes nas causas penais, têm como respectivos titulares o Ministério Público e o réu, por seu defensor. Ao juiz cabe, unicamente, dar eqüidistante e imparcialmente a cada um o que é seu, aplicando a vontade da lei.”
    Confirmando, o entendimento de Pacelli, que aponta a invalidade da prisão decreta ex officio pelo juiz, observando que “o titular da ação penal e responsável pela persecução penal em juízo é o MP. Que juntamente, com a polícia, cuida também da fase de investigação.”

    Bibliografia : SILVA JARDIM, Afrânio. Arquivamento e desarquivamento do inquérito policial p.124 apud CHOUKR, Fauzi Hassam. Código de Processo penal, comentários consolidados e crítica jurisprudencial. 2 ed. Rio de Janeiro. Lumen Juris.2007. p.506.

    OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. FISHER, Douglas ( obra citada no texto da colega).

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  2. Excelente! Renato Brasileiro nos ensina que prevalece na doutrina o entendimento de que o juiz só pode decretar a prisão preventiva de ofício durante o curso do processo e não na fase pré-processual. Justamente para evitar a violação da imparcialidade como muito bem comentado no artigo acima.

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